Mini Conto | A Queda

Se anjos não possuem livre-arbítrio, o que explica a queda do Primeiro Anjo?
Resolvi imaginar como teria sido e o resultado é este texto.

Pintura em preto e branco representando a queda de um anjo do paraíso

Não havia nuvens no céu quando ele pensou o que pensou. Até então, sua vida seguia como seguia todos os dias até ali; reverência após reverência ao Santo dos Santos e assim por toda a eternidade, era o que ele pensava. Mas, naquele dia sem data, sem hora e sem local marcado, um pensamento pairou em sua mente, até então, incólume de pensamentos estranhos: por que? Perguntara-se ele. Não havia uma resposta, pelo menos não àquela altura. Mas, dia após dia, essa pergunta martelava-lhe a mente cada vez mais e cada vez mais ele se sentia intrigado sobre o porquê de fazer o que fazia todos os dias ad infinitum.

Ele era o maior dos Anjos, o portador da Luz, criação do Deus maior. Ele existia antes da humanidade vir à luz do dia, conhecia os planos do Criador e seus desejos para a eternidade. Ainda assim, em algum momento inoportuno os porquês surgiram em sua mente e desde então uma inquietude tomara conta de seu espírito. Por que Deus o criara, para que fim ele existia, a quem ele servia, quais eram as suas vontades e qual era o seu destino? Todas essas perguntas assombravam-lhe a mente que, até então, permanecia imaculada, pura e livre de questionamentos. Ele era um Anjo, o maior deles e, como tal, dúvidas não tinham espaço em sua mente servil e submissa a Deus. Mas, por algum acaso do destino, a dúvida nasceu em sua mente e, desde então, sua vida nunca mais foi a mesma.

Resolveu tirar satisfação com seu mestre divino. “Como assim ele questionaria a Deus?”, pensavam os outros anjos. Alguns entre eles, apesar de tudo, viam a cena com certa condescendência. Não que, além do Portador da Luz, houvessem outros anjos com os mesmos questionamentos, mas uma semente havia sido jogada entre eles e, pouco a pouco, ela começava a germinar e dar a luz a pequenos frutos. Deus, enraivecido com a ousadia de seu Primeiro Anjo, decidiu que ele estava desviado de suas ordens, desvirtuado de suas funções. E, por isso, merecia uma punição: cuidaria dos humanos que, há pouco, Deus criara. “Meu Senhor, que farei eu com estes homens, criaturas tão pequenas que mal sabem o que é a vida?”, perguntara-lhe o Anjo cético que, agora, experimentara o sabor da dúvida. “Cuide para que sigam meus caminhos não como tu fizeste, mas como Eu ordenei”, dissera Deus, com toda a autoridade. E o Anjo desceu para a Terra onde o primeiro homem e a primeira mulher experimentavam as maravilhas do primeiro mundo, a terra abençoada criada por um Deus misericordioso que, na verdade, era um tanto irascível e incapaz de aceitar questionamentos. O Anjo se fez carne e então, se fez serpente. Assim, seduziu o homem e a mulher para que comessem o fruto do conhecimento e assim conhecessem a verdade sobre Deus.

Mas, a verdade era que Deus não era tudo o que existia nesse mundo. O mundo era mais do que simples separação entre o bem e o mal, o preto e o branco. O conhecimento da verdade libertava, mas ao mesmo tempo, os prendia a uma constatação assustadora: nada está sob nosso controle. Assim, Deus, enraivecido pela atitude do Anjo em forma de serpente, o puniu condenando-o a se rastejar por toda a existência. Ao homem, deu-lhe as dores do trabalho pesado. À mulher, o sofrimento das dores do parto. A ambos, a luta por encontrar alimento e alento. Mas a Deus, aquele que colocara o fruto proibido no ponto mais especial do Jardim Secreto, não coube nenhuma punição, afinal, ele era Deus. Ao Anjo, a dor da condenação. A Deus, a absolvição.

Autor: Pedro H.C. de Sousa

Uma sombra daquilo que um dia eu fui.

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